O cineasta alemão que negou emprego do próprio Hitler criou sua maior obra-prima em 1931, com M – O Vampiro de Dusseldorf. É verdade que cinco anos antes, em 1926, Fritz Lang dirigiu com maestria técnica o futurista Metrópolis, mas é com M que o mesmo diretor chegou ao que considero sua perfeição. Inspirado claramente pelo Expressionismo Alemão (tendência artística inspirada no temor ao desconhecido e ao sobrenatural), cujos primeiros exemplos no cinema são filmes como O Gabinete do Dr. Caligari e Nosferatu, M possui uma fotografia característica do movimento, cheia de sombras e escuridão, e personagens misteriosos, além de momentos aterrorizantes. O filme envelheceu um pouco, é verdade, mas ainda pode ser considerado uma obra-prima magistral, das maiores que o cinema já viu.
M é reconhecido hoje como o primeiro grande filme da cinemateca alemã. Originalmente, seria chamado de The Murders are Among Us ("Os Assassinos estão Entre Nós"), o que poderia ser considerada uma referência a um grupo Nazista da época. Com medo de que reconhecessem tal referência, Fritz Lang acabou alterando o título para “M”, da palavra Murders. O filme foi baseado em um caso verídico, do assassino em série Peter Kuerten, na mesma cidade de Dusseldorf do filme, embora o roteiro tenha muitos elementos fictícios, e fala sobre um infanticida que vem aterrorizando as mães daquela cidade (o assassino original não matava crianças). O criminoso põe toda a força policial e toda a população em alerta, e começa a ser caçado intensamente, a ponto de chegar a atrapalhar os negócios da máfia local, que passa a procurá-lo sem parar também.
O filme é sensacional também no uso do som, possuindo uma linguagem muito a frente de seu tempo. Lang foi um dos primeiros cineastas a utilizar o som para ajudar a contar a história além do que mostram as imagens. Frame parado, imagem suspensa, e o som continua contando a história. Dessa forma foram criados momentos de suspense e tensão inacreditáveis, como na cena em que o assassino, acuado como um rato por seus perseguidores em um canto escuro (imagem parada em sua expressão de medo) ouve o som deles cada vez mais alto, e sabe que será inevitavelmente descoberto. O uso da música In the Hall of the Mountain King, como marca registrada do assassino, que a assobia enquanto anda calmamente pelas ruas, também ajuda a criar um clima de suspense maravilhoso.
M, embora não seja tecnicamente tão impressionante como Metrópolis (na realidade é melhor, mas apenas por causa da evolução natural do cinema, mas relativamente falando não é tão revolucionário quanto), é mais interessante em termos de narrativa, que aqui poucas vezes fica monótona (característica comum em Metrópolis, por mais que os críticos em geral o idolatrem). É a utilização da técnica aliada a uma história de conteúdo importante. Sobretudo o personagem de Peter Lorre, o assassino, que aparece apenas com destaque na segunda metade do filme, é multidimensional e completo. Os olhos do ator, atormentados na cena final, produzem um dos melhores momentos do filme, para não dizer de todos os tempos no cinema, sem exageros. É um momento único e forte, que retrata toda a personalidade ambígua do personagem. Um dos assassinos mais interessantes do cinema: perigoso e ingênuo, medroso, ao mesmo tempo.
Como em Metrópolis, novamente o ser humano e suas emoções são o ponto de suporte da história de um filme de Fritz Lang. O diretor retrata o pior do ser humano: sua hipocrisia, arrogância, como o assassino que acaba julgando o assassino, ou a acusação da lei do homem com suas falhas óbvias que deixam assassinos soltos, com a desculpa de que problemas mentais os deixam irresponsáveis pelos seus atos (de qualquer forma, a lei do homem não traz as vítimas de volta, como constata a mãe na maravilhosa e tocante cena final). Seria o personagem de Lorre realmente um doente mental, ou seu comportamento é apenas um artifício para tentar se livrar da pena de morte? A carta que escreve aos jornais dá indícios de que ele faz isso deliberadamente, por exemplo, embora essa questão seja duvidosa.
Independente de questões sobre a perfeição (ou não) do roteiro, M é sim um filme completo. Além do clima de suspense, promovido evidentemente pela linguagem visual e pelo seu próprio tema sinistro, das maravilhosas interpretações (fora a figura do assassino, o filme não tem outro personagem forte: todos os coadjuvantes têm sua importância para contar a história), do estudo do comportamento humano, sobra ainda espaço para o humor, obviamente que de forma leve, quase invisível. Toda a cena em que os perseguidores da máfia perseguem o personagem de Lorre na fábrica vazia é uma grande piada, no bom sentido. Pelo menos pode ser vista desse jeito. Lá estão os 10 patetas (ou seja lá qual quantidade de pessoas for) tentando caçar um rato das formas mais absurdas possíveis, para não serem descobertos. E quando um deles é capturado pela polícia, momentos depois, a cena do interrogatório pode ser considerada no mínimo irônica: o gato virou o rato.
Fritz Lang, a frente do seu tempo, já acabara prevendo, de forma bem sutil, os problemas que o Nazismo traria para o mundo. M serve, porque não, como uma crítica sutil (não literal) a esse regime ditatorial que, anos mais tarde, aterrorizaria meio mundo. O diretor acabou sendo banido do seu próprio país, indo parar em Hollywood, onde fez alguns ótimos filmes, como o noir Os Corruptos, de 1953, considerado um dos melhores do gênero naquela década. Mesmo assim nunca conseguiu igualar novamente M. Clássico absoluto e necessário para se entender melhor esse cineasta dos mais importantes. Mais de sete décadas depois, seu filme ainda permanece impressionante.
(Por Alexandre Koball)
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